Francinete A. de Oliveira GIFFONI Gislene Farias de OLIVEIRA Valônia Linard MENDES |
Religião e Medicina Popular na Formação do Médico Brasileiro |
Resumo
O presente estudo buscou analisar a influência do contexto sócio-histórico na construção do pensamento médico brasileiro desde a colonização até os dias de hoje, tendo como foco a relação entre religiosidade e cura. Trata-se de um estudo exploratório, documental, que utilizou como fontes: trabalhos originais publicados, monografias, teses, relatórios técnicos e livros.Os resultados evidenciam a influência do processo de colonização na formação das escolas médicas no Brasil e apontam para a necessidade do resgate do sincretismo cultural brasileiro na abordagem da saúde e da doença e na construção de uma medicina contextualizada, na qual a subjetividade e espiritualidade assumam papel significativo na formação de profissionais médicos. A questão da saúde no espaço coletivo requer, portanto, o aprofundamento na busca da construção histórica de uma medicina integral, que adote uma perspectiva multidisciplinar, e considere a dimensão social. Uma medicina, cujas políticas sejam coerentes com a realidade do contexto no qual se aplicam. Nesse sentido, vêm se ampliando os métodos de abordagem e terapêutica, através de ações interdisciplinares, que abrem novas perspectivas de intervenção no campo da saúde individual e coletiva.
Palavras-Chave: Saúde, Cura, Religiosidade.
Introdução
O município de Barbalha, região do cariri cearense, se caracteriza por um rico aporte das tradições religiosas afro, índia e européia. O trabalhando na área da saúde coletiva, ajuda a entrar em contato com a diversidade cultural da região, que se reflete na pluralidade de concepções religiosas e práticas populares de cura ali presentes.
O novo currículo do curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará, trouxe a possibilidade de conhecimento dos pressupostos médico-antropológicos, através da disciplina Saúde Comunitária, que se efetivaram num projeto de extensão denominado “Assistência comunitária em saúde”, implementado na região do cariri. município do Crato. Proporcionou a criação de uma linha de pesquisa, com diversos projetos já realizados[1] e também o projeto de iniciação à docência, intitulado Abordagem médico-antropológica em Saúde Comunitária visando o aprofundamento no vocabulário popular das doenças e itinerários terapêuticos. Desta forma, damos enfoque especial às práticas populares como fitoterapia, romarias, rezadeiras e outras.
Nesta perspectiva, elaboramos o presente estudo cujo tema central é a influência das crenças religiosas nas concepções de saúde e doença. A partir deste foco, objetivamos investigar o desenvolvimento da Medicina no Brasil, e suas repercussões no delineamento do perfil do médico para atender à população brasileira na atualidade. O estudo deverá se estender desde a época da colonização até os nossos dias, relacionando o processo vivido pela medicina no Brasil com o processo mais amplo de evolução do pensamento médico nas diversas civilizações humanas.
As Crenças Religiosas e sua influência nas concepções de saúde e doença
Soares (2001), estudando a cultura indígena do Brasil colônia, afirma que os saberes, conteúdos e crenças dos nativos eram permeados por uma cosmologia polissêmica, na qual as doenças eram consideradas como manifestações de seres da natureza, e as curas realizadas com plantas e rezas. Lévy-Strauss (1984), assinala aspectos do sincretismo religioso entre os indígenas brasileiros.
Na época da colonização, o Brasil contava com pequeno número de médicos, de forma que curadores leigos exerciam seu ofício sob a égide da fé cristã, oriunda de Portugal e da Europa. A doença era vista como conseqüência do pecado e nas boticas e enfermarias de caridade o alvo maior de atenção dos jesuítas era a alma pecadora, e não o corpo do doente propriamente dito(Soares, 2001, p.410). Os africanos, por sua vez, cuidavam-se segundo as tradições de seus antepassados, evocando o auxílio de forças espirituais. A cultura afro deixou influências marcantes no panorama das religiões do Brasil, miscigenando-se também às crenças indígenas e ao catolicismo nas interpretações da saúde e da doença.
A partir do no séc. XVIII, pelas determinações legais de Lisboa o cuidado com as questões relativas à saúde pública da Colônia, ficaram a cargo dos comissários enviados pela Coroa e do Senado das Câmaras Municipais. E, ao final do séc. XIX, a Academia Nacional de Medicina começou a travar verdadeira batalha contra os mezinheiros e os curadores nativos na tentativa de desacreditá-los, junto à opinião pública para conseguir do Estado a repressão das atividades terapêuticas consideradas ilegais em favor de sua ciência. (Soares, 2001, p. 417).
Pode-se observar que o antagonismo entre a Medicina oficial da Corte e as práticas populares de cura, teve, portanto influência da estrutura de classes da sociedade brasileira, na relação de dominação estabelecida entre essas classes. Por outro lado, essa luta está impregnada da história da racionalidade científica na humanidade, fonte da racionalidade médica ocidental contemporânea. A negação da influência dos aspectos sócio-culturais da doença e da cura, a partir da adoção do paradigma científico como critério de verdade, deu origem ao preconceito contra os saberes populares socialmente construídos.
Essa visão não dialógica, tenta ainda hoje garantir sua hegemonia no Brasil e em outros países, ressaltando o modelo biomédico como referência única na abordagem da saúde e da doença. É uma visão reducionista que ignora a complexidade das interrelações entre os fatores biológicos, sociológicos, econômicos, ambientais e culturais que envolvem o adoecer humano. A fundamentação no paradigma mecanicista da física Newtoniana, já superada, mas ainda impregnada na mentalidade médica, tem levado a Medicina Oficial a excluir de suas concepções e práticas, dimensões humanas, dentre elas, a religiosidade.
Confrontando esse paradigma, surge um movimento entre estudiosos de diversas áreas, espalhados por todo o mundo, no sentido de resgatar a visão integral do ser humano com sua individualidade e complexidade (Capra, 1997; Castiel, 1994). Férrer(2002), aponta falhas na formação médica científica tradicional, quando ignora a multidimensionalidade e a religiosidade do homem.
(...) Pessoas são seres bio-psico-sociais-espirituais, que se realizam na comunidade de pessoas e na comunidade dos povos do mundo (p.916) (...)Os médicos resistem à espiritualidade e à oração para a saúde humana porque isto foi internalizado durante o processo de sua formação(p.904).
Segundo o autor, nem a oração necessita ser justificada pela medicina, nem a medicina pela religião. A religião estaria intimamente ligada à constituição biológica do ser humano. O autor refere que, através do uso de tomografia (SPECT), foi evidenciado o fato de que durante a experiência religiosa da oração, as áreas dos lóbulos frontais, que governam a atenção, entram em maior atividade (Ferrer, 2002). Cita pesquisas realizadas nos EUA, indicando que as crenças espirituais e religiosas tem um efeito positivo na saúde dos pacientes. Os resultados também mostram que os médicos são menos religiosos que a população em geral.
Utilizaremos neste estudo o termo espiritualidade para referirmo-nos à busca religiosa do homem, enquanto ser, dotado de espírito. definida dessa forma, a espiritualidade não implica necessariamente na fé em uma divindade pessoal, ao estilo do Deus judaico-cristão. Férrer (2002) afirma que a tendência dos seres humanos à religião e à experiência espiritual está inscrita em nossos genes e que a busca de sentido e de significado é uma das necessidades fundamentais do ser humano, que o distingue das demais espécies. Além disso, refere que estudos realizados recentemente na Faculdade de Medicina de Harvard, demonstraram que as crenças têm repercussões físicas e possuem um papel importante na prevenção e tratamento de enfermidades.
Esse pensamento faz parte de um novo paradigma emergente, que vem trazendo novas perspectivas de compreensão do binômio saúde-doença, com implicações para a formação do profissional médico da atualidade. Graças a este movimento observam-se profundas modificações nos currículos de graduação em Medicina em diversas universidades do mundo.
De acordo com a Associação Médica Americana, pelo menos 19 universidades dos Estados Unidos, incluindo Harvard, já dispõem de cursos semelhantes para discutir a relação espiritualidade-saúde de forma que os alunos percebam como as religiões influenciam nas decisões a respeito de temas como: controle da natalidade, eutanásia e transfusão de sangue, dentre outros.
Em pesquisa recente, Freire e Moreira (2003) demonstraram que a escuta clínica em psicoterapia e os atendimentos psiquiátricos e psicológicos no Brasil encontram-se povoados de pessoas que buscam associar à ajuda psicológica e médica, outras formas de ajuda, em especial a ajuda espiritual. Afirmam que a espiritualidade é uma característica marcante e fundamental da cultura de nosso país e que, nas concepções de saúde e doença do povo brasileiro, “explicações científicas se entrelaçam com formulações místicas. Religiosidade e psicopatologia se superpõem de uma maneira tal que fica difícil identificar os limites entre uma e outra, onde termina a experiência psicopatológica e tem início a religiosidade, e vice-versa”. (p.94).
Segundo os autores, a realidade brasileira nos mostra não só a proliferação de religiões, mas também seu sincretismo. Além do cristianismo, que engloba religiões de todos os matizes, há ainda o budismo, o messianismo e outros sistemas filosófico-religiosos orientais, os mórmons e as testemunhas de Jeová, o fundamentalismo islâmico e judaico, o espiritismo e os cultos afrobrasileiros como a umbanda e o candomblé.
Nesse contexto, o estabelecimento de uma medicina socialmente adequada, deve, necessariamente levar em conta a complexidade e a singularidade do adoecer humano (Castiel, 1994), incluindo suas relações com a espiritualidade. O profissional médico a ser formado precisa familiarizar-se com essas questões, de forma que, em nosso país, a instituição de disciplinas envolvendo a espiritualidade no currículo médico já é uma realidade.
O curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará deu um passo à frente dos demais cursos no Brasil. É a primeira universidade brasileira que tem na graduação de Medicina uma disciplina sobre espiritualidade. Criada em 2004, a disciplina optativa Medicina e Espiritualidade que consta na grade curricular traz conceitos como espiritualidade e religião, relacionando temas como saúde, oração e fé; auto-cuidado; oncologia e espiritualidade, dentre outros. “A espiritualidade faz parte da vida das pessoas e a medicina não pode mais ignorar isso”, acredita Sergio Felipe de Oliveira, especialista em clínica-médica e pesquisador do Instituto de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (USP). Para o autor a prática religiosa pode funcionar como um complemento, podendo associar-se a diversos tipos de tratamento.
O objetivo do presente estudo foi compreender a formação médica como construção social e histórica, investigando a evolução do pensamento médico no Brasil, desde a colonização até os dias de hoje, tendo como foco a relação religiosidade e cura. Para isso foi necessário: a) Mapear a trajetória da Medicina no Brasil estabelecendo relações com a evolução do pensamento médico nas diversas civilizações humanas; b) Analisar a influência do contexto sócio-histórico na construção do pensamento médico brasileiro desde a colonização até os dias de hoje; c) Identificar concepções mágico-religiosas das doenças, saberes e práticas populares de cura e sua relação com a Medicina Oficial no Brasil; e d) Investigar a relação entre espiritualidade e medicina nos cursos de Medicina do Brasil e do mundo nos dias atuais.
O presente trabalho de caráter exploratório, pretendeu oferecer uma visão panorâmica e uma aproximação com a temática em foco, trazendo a tona dados elementares que pudessem dar suporte para a realização de estudos mais aprofundados sobre o assunto em pauta (Gonçalves, 2001).
O estudo bibliográfico, teve dados obtidos através de:
· Fontes primárias: trabalhos originais com conhecimento original e publicado pela primeira vez pelos autores, como monografias, teses universitárias, livros, relatórios técnicos e artigos em revistas científicas.
· Fontes secundárias: artigos de revisão bibliográfica e livros-texto.
· Fontes terciárias: índices categorizados de trabalhos primários e secundários, com ou sem resumo, bases de dados bibliográficos e listas bibliográficas.
Para desenvolver a análise da temática em foco, organizamos arquivos a partir de toda a documentação coletada, com fichas de leitura, construindo quadros de autores e de termos-chave, acrescentados de comentários ou observações relacionadas às questões da pesquisa.
Procuramos descrever os instrumentos e meios de realização da análise de conteúdo, apontando o percurso em que as decisões foram sendo tomadas quanto às técnicas de manuseio dos documentos: desde a organização e classificação do material até a elaboração das categorias de análise.
A perspectiva historiográfica foi adotada nesse estudo na tentativa de compreender a dimensão sócio-histórica em que se constituiu a produção científica em estudo.
Foi elaborado um organograma da História da Medicina com relação a práticas de cura no mundo e no Brasil.
A partir do organograma, procedeu-se ao estudo sobre a Medicina Oriental, em suas vertentes Ayuvérdica e Chinesa, e sobre os primórdios da Medicina Ocidental, tendo como base, principalmente, as referências: Cadwell (1998); Nestler (2002); Ribeiro (1998) e Urban (2002).
Em seguida, foi estudada a História da Medicina no Brasil, desde o período pré-colonial, dando ênfase à miscigenação que houve entre as culturas indígena, afro e portuguesa, referências principais: Soares (2001); Araújo (1999); Camargo (2000); Cardoso (1995); Cruz (2004);
Para iniciar o estudo dos aspectos da educação e sua relação com a cultura na Formação Médica, nos detemos às referências: Charlot (2000) e Gramsci (1982). Ambas trazem conceitos de cultura, saber, como o saber é transmitido, a formação das escolas, além da relação entre a estrutura de classes e sua influência na transmissão do conhecimento.
O estudo mais específico da Formação Médica foi baseado, principalmente, nas referências: Gallan (2001); Koifman (2001); Cerqueira, 2002) e Cruz (2004).
Resultados e Discussão
A pesquisa evidenciou que as antigas civilizações orientais desenvolveram uma Medicina Natural que tem como fundamento a relação harmônica entre o homem e a natureza. Embora a filosofia da Medicina Natural aparentemente tenha se originado na Grécia, na verdade ela é anterior a Hipócrates. A Grécia recebeu conhecimentos da Índia antiga, uma vez que existia considerável intercâmbio cultural entre esses povos.
Há cerca de 6000 anos, na Índia, desenvolveu-se a Medicina mais antiga de que se tem notícia, a Ayurvédica, que consiste num sistema complexo de cuidados com a saúde, envolvendo desintoxicação, dieta, exercícios físicos, uso de ervas e técnicas para aperfeiçoamento mental e emocional. Consiste mais em um estilo de vida do que um tratamento ocasional.
A Medicina Oriental Chinesa tem uma linguagem bastante simples, e, no entanto, profundamente simbólica. A noção de equilíbrio entre o macro-cosmos (universo) e o microcosmo (homem) traduz a saúde do indivíduo. Nessa visão, as emoções são naturais nos seres humanos e é saudável senti-las, em sua plenitude, em cada momento.
Entretanto, quando uma ou mais emoções se exacerbam ou se tornam-se uma constante, isso acaba ocasionando um desequilíbrio em um dos meridianos (vias de energia no nosso corpo), podendo inclusive levar a uma lesão física ao órgão associado àquele meridiano. Com base neste princípio, propõe-se com tratamento a acupuntura, a moxa, massagens como do-in e shiatsu, além da fitoterapia, hidroterapia e exercícios respiratórios como tai-chi-chuan. São também preconizadas regras de higiene, procedimentos sexuais, meditação e dietética, que curam as enfermidades através da restauração do fluxo vital.
Os médicos da antiga China eram exímios filósofos e sua razão de viver era pautada nos conceitos de harmonia e de equilíbrio. O seu trabalho consistia em restabelecer a harmonia entre o homem e a ordem do universo, segundo as leis naturais que regem todas as coisas (Cadwell, 1998; Nestler, 2002).
A pesquisa constatou a inicial e importante influência de Hipócrates no redirecionamento da Medicina como conjunto de disciplinas científicas, desvinculando-se de forças sobrenaturais. A partir da Escola de Cós, na Grécia, Séc. V a. C., foi estabelecido no Ocidente os princípios da Medicina fundamentada no corpo, a sistematização das doenças e a Clínica Médica.
No âmago da Medicina Hipocrática está a convicção de que as doenças não são causadas por demônio ou forças sobrenaturais, mas são fenômenos naturais que podem ser cientificamente estudados e influenciados por procedimentos terapêuticos e pela judiciosa conduta de vida de cada indivíduo. Assim a Medicina devia ser exercida como uma metodologia científica, baseada nas ciências naturais, abrangendo tanto a prevenção como diagnóstico e terapia (Capra, 1982).
A partir de Hipócrates, formou-se a base para a prática e o ensino médico no Ocidente e, posteriormente, através dos portugueses, no Brasil. A Medicina, passou a se constituir numa ciência cada vez mais desligada das crenças e da fé religiosa, seguindo o rumo do método de experimentação científica.
Esta realidade se evidenciou no apogeu do capitalismo e da racionalidade científica no Séc. XIX que modificaram a escala de valores na formação Médica, levando, inclusive à ruptura com aspectos da subjetividade humana, como a espiritualidade.
Estes aspectos sócio-históricos determinaram os rumos do desenvolvimento do ensino médico no Brasil. A colonização portuguesa nos séculos XVI e XVII deixou profundas marcas nas práticas populares de cura praticadas pelos primeiros habitantes do Brasil. Além das concepções mágico-religiosas e das curas praticadas pelos índios e afro-brasileiros, a Medicina popular era exercida pelos cirurgiões e barbeiros, como foram denominados aqueles que sabiam curar e sangrar e estes eram poucos, com baixas condições socioeconômicas e pouca escolaridade. Até meados do séc. XIX, ainda eram poucos os médicos com formação acadêmica atuando no Brasil. Devido à proibição da metrópole ao estabelecimento do ensino universitário em seus domínios ultramarinos, somente os segmentos letrados das elites coloniais tinha recursos suficientes para custear a formação de alguns de seus filhos nas universidades européias (Soares, 2001).
Os médicos que se formavam no exterior nem sempre regressavam ao Brasil imediatamente após a conclusão do curso e, os que retornavam, atuavam junto às classes privilegiadas das quais faziam parte.
No séc. XIX, com a criação das faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, diminui o número de médicos formados na Europa. E, apesar da formação de médicos aqui, continuou o problema do efetivo numérico reduzido. Aliava-se a isto, o fato da sociedade não atribuir aos saberes médicos legitimidade suficiente para lhes garantir o monopólio da competência em matéria de curar doença.
A doença e a cura possuíam significados específicos, baseados em crenças e na religiosidade sincrética do povo. Tal fato conduzia os enfermos a buscar outros caminhos para a preservação e o restabelecimento da saúde, independente da ausência ou presença de médicos. O tratamento das enfermidades geralmente era conduzido pelos próprios familiares do doente. Entre os devotos da fé católica, quem estava quase sempre próximo à cabeceira do moribundo nos momentos derradeiros era a figura de um padre e não de um médico. Muitas vezes, a doença era considerada fruto do pecado ou das artimanhas do demônio, a cura dependia da vontade divina, não dos remédios (Soares, 2001).
Os negros, por sua vez, em sua maioria, cuidavam-se segundo as tradições de seus antepassados, evocando o auxílio de forças espirituais que cultuavam em seus países de origem. Para eles, o poder de cura era atributo daqueles que possuíam o dom de comunicação com os espíritos ancestrais.
Diante dessa realidade, as determinações legais de Lisboa, eram de que o cuidado com as questões relativas à saúde pública da Colônia, ficassem a cargo dos comissários enviados pela Coroa e do Senado da Câmara Municipais. E, ao final do séc. XIX, a Academia Nacional de Medicina começou a travar verdadeira batalha contra os mezinheiros e os curadores nativos na tentativa de desacreditá-los, junto à opinião pública para conseguir do Estado a repressão das atividades terapêuticas consideradas ilegais em favor de sua ciência.. Soares ( 2001, p. 417).
Em 1910, Abraham Flexner realizou uma primeira grande avaliação sobre o ensino médico nos Estados Unidos. Embora tenha reformulado e modernizado o ensino médico, nele imprimiu características mecanicistas, biologicistas, individualizantes e de especialização, com ênfase na medicina curativa e exclusão das práticas alternativas.
O objetivo da avaliação era dar ao ensino médico uma base científica sólida. O resultado foi a publicação, em 1910, do Relatório Flexner (Koifman, 2001). Este serviu de base para o ensino Médico nos Estados Unidos; nele fixam-se rigorosas diretrizes a que se obedece até hoje, e que têm reflexos em várias outras partes do mundo, inclusive no Brasil, onde por orientação do Governo Federal, seguiu-se o modelo Flexneriano nas universidades públicas no período de 1950 a 1971.
Com a Reforma Universitária — lei no 5.540/1968 —, implantada durante o governo militar, oficializou-se a separação entre o chamado currículo básico e o profissionalizante, modificando-se a dinâmica interna dos currículos (Koifman, 2001).
Em 1988 foi aprovada pela nova Constituição a lei do Sistema Único de Saúde (SUS), que assegurou legalmente os seguintes princípios: integralidade das ações, equilíbrio do conhecimento geral-especializado, determinação social do processo saúde-doença, trabalho interdisciplinar, uso de tecnologia adequada e inclusão de práticas de medicinas ditas alternativas (Koifman, 2001).
Como pode-se observar, a hegemonia alcançada pelo modelo biomédico, no mundo ocidental, no Brasil, particularmente, teve a influência da estrutura de classes da sociedade brasileira, na relação de dominação estabelecida entre essas classes, processo que se iniciou desde o processo de colonização. Por outro lado, essa questão está imbricada na própria história da construção da racionalidade científica na humanidade e da racionalidade médica ocidental contemporânea.
(Ferrer, 2002) cita pesquisas realizadas nos EUA, indicando que as crenças espirituais e religiosas tem um efeito positivo na saúde dos pacientes.
Faculdades americanas, desde 1994, começaram a incluir componentes de espiritualidade no seu ensino no intuito de ensinar ao aluno a coletar elementos de espiritualidade como parte da história clínica, pesquisar a bibliografia existente sobre a importância da espiritualidade para a assistência sanitária, apresentar casos em que as crenças espirituais afetaram os pacientes. Nesse sentido, passaram a reconhecer conselheiros espirituais como parte integrante do corpo clínico, motivando os alunos a ver seus próprios sistemas de crenças, avaliando como esta podem ajudar ou dificultar a relação médico-paciente. Novas disciplinas surgem para introduzir noções teóricas sobre as principais tradições religiosas, pondo em relevo sua relação com a medicina e sua importância para as decisões no campo da saúde.
Enquanto o modelo biomédico pouco tem a dizer sobre o sofrimento humano e não leva em conta a dimensão intrapsíquica e a religiosidade na formação das doenças, as tendências emergentes solicitam a inclusão do caráter mítico, interpretativo do adoecer humano. Esse momento aponta para um novo paradigma.
Nesse enfoque, não mais se admite a possibilidade de considerar a tradição médica erudita ocidental como um referencial único, a partir do qual deveriam ser avaliadas outras práticas médicas. Considera-se hoje que há uma lógica embutida em cada modelo médico, que deve ser analisado no contexto social onde está inserido. Além disso, esses modelos devem ser compreendidos historicamente e comparados, um em relação aos outros.
Sob o prisma do novo paradigma adotado na medicina, que considera a complexidade e a singularidade do adoecer humano (Castiel, 1994), o Brasil tem buscado novas perspectivas na abordagem da saúde e da doença. A partir da Constituinte de 1988 teve início uma redefinição de modelos para o Setor de Atenção Básica à Saúde no Brasil, com a criação do SUS.
Em 1993, o Governo Federal colocou em prática o Programa de Saúde da Família, que garante, além dos pressupostos do SUS, o trabalho comunitário, a territorialização da prática de saúde, a resolubilidade no nível de atenção primária de saúde (APS) e a educação em saúde (Koifman, 2001).
Mas a pergunta que se faz é se esse movimento — que implicou mudança do discurso oficial quanto à prática médica — teve reflexo em termos de modificação da estrutura curricular das faculdades de Medicina do Brasil. Na verdade, a divisão do curso de medicina em várias disciplinas estreitamente calcadas numa visão biologicista, a grande ênfase dada às especialidades, o ensino excessivamente teórico e a formação pela qual passa o corpo docente contribuem para que o médico esteja sendo instruído de forma a conceber fragmentariamente a relação saúde-doença (Koifman, 2001).
Desse modo, existia a necessidade de redirecionar o ensino e a prática médica, no sentido de considerar a visão integral do paciente, tendo o profissional médico o compromisso não só com o tratamento, mas com a promoção da saúde. Essa integralidade envolve a abordagem do indivíduo como um todo, corpo e mente, além de sua relação com o meio, o que inclui também a religiosidade.
Em 2001, a Universidade Federal do Ceará, pioneiramente lançou um novo currículo para o curso de Medicina, com o intuito de promover a humanização da prática médica. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, o perfil do formando egresso/profissional deve ser: Médico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva. Capacitado a atuar, pautado em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade à assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, como promotor da saúde integral do ser humano.
O curso de Medicina da Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, também deu um passo à frente dos demais cursos no Brasil, inaugurando em 2004 a disciplina optativa Medicina e Espiritualidade, que traz conceitos como espiritualidade e religião, e aborda temas envolvendo saúde, oração e fé; auto-cuidado; oncologia e espiritualidade, dentre outros. Desta forma, a UFC é a primeira universidade brasileira que tem na graduação de Medicina uma disciplina sobre espiritualidade.
“A espiritualidade faz parte da vida das pessoas e a medicina não pode mais ignorar isso”, acredita Sergio Felipe de Oliveira, especialista em clínica-médica e pesquisador do Instituto de Ciências Médicas da Universidade de São Paulo (USP). Para o autor a prática religiosa pode funcionar como um complemento aos diversos tratamentos existentes.
Conclusões
Os resultados evidenciam a influência do processo de colonização na formação das escolas médicas no Brasil e apontam para a necessidade do resgate do sincretismo cultural brasileiro na abordagem da saúde e da doença e na construção de uma medicina contextualizada, na qual a subjetividade e espiritualidade assumam papel significativo na formação de profissionais médicos.
A questão da saúde no espaço coletivo requer, portanto, o aprofundamento na busca da construção histórica de uma medicina integral, que adote uma perspectiva multidisciplinar, e considere a dimensão social. Uma medicina, cujas políticas sejam coerentes com a realidade do contexto no qual se aplicam. A crescente abertura a uma pluralidade de modelos de cura e ações preventivas em saúde comunitária, demanda estudos e pesquisas que visem compreender aspectos pertinentes às concepções e práticas culturais de abordagem da saúde e da doença.
A partir dessa reflexão, a tendência da medicina atual é reincorporar a visão sócio-antropológica do homem, incluindo a religiosidade nas concepções de saúde e doença, fazendo ressurgir antigos procedimentos que vêm se somar aos modernos recursos tecnológicos. Nesse sentido, vêm se ampliando os métodos de abordagem e terapêutica, através de ações interdisciplinares, que abrem novas perspectivas de intervenção no campo da saúde individual e coletiva.
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Sobre as autoras:
1. Francinete A. de O. Giffoni é Médica e Professora da Universidade Federal do Ceará.
E-mail: francinetealves@gmail.com;
2. Gislene Farias de Oliveira é Psicóloga e Professora adjunta da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal do Ceará. E-mail: gislenefo@hotmail.com;
3. Valônia Linard Mendes é Acadêmica de Medicina da Universidade Federal do Ceará;